EFEITOS DE SENTIDO ACERCA DA EDUCAÇÃO DO SUJEITO-CRIANÇA

Autores

  • Lucimara Cristina de Castro
  • Célia Bassuma Fernandes

Resumo

Pensar na relação entre lei e família implica, antes de qualquer coisa, pensar na relação entre público e privado, espaços marcados por uma relação de oposição, de tensão, mas, ao mesmo tempo e, paradoxalmente, pela complementaridade. O público é o espaço do comum na vida política da cidade, uma vez que leis igualam os sujeitos sem considerar as relações peculiares existentes no domínio do privado, isto é, daquilo que é próprio dos sujeitos, da casa e, por consequência, da família, instituição que tem passado por significativas mudanças em seu interior, em razão de diversos fatores.

Do ponto de vista da Sociologia, a família pode ser conceituada como o conjunto de pessoas aparentadas pelo mesmo sangue, vivendo ou não sobre o mesmo teto. A Psicologia a representa como um grupo social que influencia e é influenciado por outras pessoas e instituições e a Igreja Católica como sendo a célula vital da sociedade, fundada no matrimônio, além de protagonista da vida social.

Historicamente, segundo Ariès (1981), o primeiro modelo de família, tal como a concebemos hoje, surgiu no século XVII, quando se torna mais fechada (nuclear) e sentimental, ao contrário do modelo presente na Idade Média mais funcional, em que a casa era tida como empresa e as crianças confiadas às amas de leite e parteiras. Os pequenos, na Idade Média, eram submetidos e preparados para desempenhar algumas funções, tais como ajudar no trabalho do campo e dentro da casa, ou seja, a expectativa dos pais e da sociedade em relação a eles estava organizada em torno da sua capacidade para o trabalho. O sentimento de amor materno e a afetividade não existiam, pois a família era social e não sentimental. Além disso, as crianças eram castigadas fisicamente e o brincar não fazia parte de seu cotidiano.

Com o passar do tempo, a representação da criança, aos poucos, vai se transformando, assim como as relações familiares, influenciadas por todas as transformações sociais, políticas e econômicas sofridas pela sociedade no decorrer dos séculos, provocando mudanças no interior dessa instituição e também nas relações estabelecidas entre pais e filhos. A criança passa a ser educada pela própria família, o que fez com que surgisse um novo sentimento por ela, conforme Ariès (1981), fazendo emergir  o sentimento de infância.

Com isso, a educação dos filhos passa a ficar a cargo da mãe, também responsável pelos cuidados e afazeres do lar. Contudo, com a Revolução Industrial, o fluxo de migração para as cidades se expandiu, estreitando ainda mais os laços familiares. Modernizaram-se as concepções sobre o lugar da mulher nos alicerces da moral familiar e social, fazendo com que ela começasse a ocupar seu lugar no mercado de trabalho, deixando assim, parte da educação dos filhos a cargo da escola.

Logo, o conceito de infância como época específica do desenvolvimento humano surgiu apenas no século XIX, quando se consolidou o modelo de família nuclear, centrada em pai, mãe e em um número pequeno de filhos. Segundo Ariés (1981), é nesse contexto que surgiu a ideia de criança como um ser educado e formado, fazendo com que a concepção de “adulto em miniatura” – traduzida na maneira de se vestir, no trabalho, e também na participação ativa em reuniões, festas e danças – começasse a se desfacelar. Isso ocorreu porque a sociedade da época não acreditava numa inocência infantil ou na diferença de características entre adultos e crianças, já que, segundo o autor, “no mundo das fórmulas românticas, e até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido” (ARIÈS, 1981, p. 51). Mais tarde, o desfacelamento da imagem de “adulto em miniatura” fez com que a criança passasse a ocupar um maior destaque na sociedade, que, por sua vez, dirigiu-lhe um novo olhar.

No Brasil, nos primeiros séculos de colonização, o modelo dominante de organização familiar foi o patriarcal, resultante da adaptação do modelo trazido pelos portugueses. No seu interior, o homem ocupava o lugar de chefe da família e de provedor do lar, enquanto à mulher cabia procriar e cuidar dos filhos, criados para o aprendizado, para o adestramento físico e moral e para o trabalho. Nessa época, a criança não era considerada importante no contexto familiar, tinha uma educação rígida e não havia espaço para brincadeiras.

Pensar a história da criança no Brasil implica, portanto, considerar as transformações sofridas no interior da família ao longo dos séculos, uma vez que essa instituição, da ordem do privado, é contornada por leis (ordem pública), que têm o poder de influenciar até mesmo na educação dos filhos, por aqueles que ocupam o lugar de pais, nessa fase designada “infância”.

Partindo dessas considerações, este trabalho pretende analisar como o Projeto de Lei 7.672/2010, recém sancionado lei, até então denominado pela imprensa como “Lei da Palmada”, vem sendo discursivizado pela mídia, em especial, num corpus constituído por um cartaz que tem circulado na internet, como parte de uma campanha lançada pela “Rede Não Bata Eduque”. Pretende ainda, verificar que memórias, acerca da educação da criança, ressoam nesses discursos e que efeitos de sentido produzem.

 Discursivamente, pensamos a família como um espaço de produção/gerenciamento de sentidos, no qual (con-)vivem diferentes sujeitos. Na esteira de Orlandi (2004, p. 149), a compreendemos como dotada de sentidos, porque se “localiza” na cidade, isto é, ela significa em razão da sua condição de existência simbólica, ainda que empiricamente esteja em outro lugar.

 Para atingir nossos objetivos, mobilizaremos o arcabouço teórico da Análise de Discurso (AD), que nasceu com Michel Pêcheux, sob o horizonte do Marxismo, da Psicanálise e da Linguística, e que como o próprio nome indica, toma como objeto de estudo não a língua como um sistema abstrato, mas o discurso, definido pelo seu fundador como “efeito de sentido entre locutores” (PÊCHEUX, 1997a, p. 82).

Para Orlandi (2012), principal nome da AD, no Brasil, a linguagem funciona como mediadora indispensável entre o homem e o meio social e natural em que ele vive. Assim, o discurso – objeto sócio histórico e lugar onde a ideologia se materializa – é produzido por um sujeito interpelado pela ideologia. Trata-se, portanto, de estudar a relação que se estabelece entre a língua, o sujeito e a história, pois conforme Pêcheux apud Orlandi (2012, p. 17), “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido”.

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Publicado

2015-02-24