DISCURSO, MEMÓRIA E IMAGEM PÚBLICA: A MULHER POLÍTICA EM CAMPANHA

Autores

  • Joseane Silva Bittencourt
  • Nilton Milanez

Resumo

           No Brasil, a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, que regulamenta as eleições, dispõe, no parágrafo terceiro do artigo 10, sobre o percentual que cada partido e coligação deve preencher para candidaturas de cada sexo. Assim está descrito: “§ 3o  Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”. É importante pensar sobre o que significa uma cota mínima de 30% para candidatura de cada sexo. Se existe essa exigência em lei, é porque havia (ou há) uma desproporção no preenchimento de vagas entre candidatos do sexo masculino e do sexo feminino. E a história nos mostra que essa desigualdade na ocupação de cargos públicos eletivos tende para as mulheres.

            A partir dessa constatação, objetivamos analisar a constituição da imagem da mulher política como um sujeito apto para o governo dos outros, revestida de sua singularidade feminina, por meio da análise de dois excertos do programa eleitoral gratuito de televisão da coligação “Para o Brasil seguir mudando”, veiculado no dia 28 de outubro de 2010[1], cuja candidata é a agora presidente Dilma Rousseff. Para tanto, utilizamos a perspectiva da Análise do Discurso, tal como a praticamos no Brasil, evidenciando os aspectos teóricos e metodológicos que configuram o quadro do funcionamento discursivo das materialidades híbridas, como o vídeo, sob uma ótica da memória, tanto a memória discursiva quanto a memória das imagens, denominada intericonicidade; duas noções postuladas por Jean-Jacques Courtine.

            Esse deslocamento dos corpora formado pela linguagem verbal para a linguagem híbrida se faz necessário pelo fato de que as novas tecnologias audiovisuais passaram a ter uma importância salutar no controle do sujeito público na sociedade contemporânea. O controle dos gestos, da modalização da voz, a enunciação de formas breves e a modificação da aparência remontam a toda uma pedagogia para o sujeito político, dispositivo para a arte de governar: “os discursos estão imbricados em práticas não-verbais, o verbo não pode ser mais dissociado do corpo e do gesto, a expressão pela linguagem conjuga-se com aquela do rosto, de modo que não podemos mais separar linguagem e imagem”. (COURTINE, 2011a, p. 150)

            Assim, para a proposta sugerida neste trabalho, a imagem surge como a materialidade das discursivizações, fazendo com que os gestos e as expressões faciais do político signifiquem tanto quanto suas promessas e programas de governo, recuperando memórias imagéticas que decalcam valores morais para o comportamento e caráter do político, imposto pelo discurso da governamentalidade, isto é, da capacidade de ação sobre a ação dos outros. Nesse sentido, cabe fazer uma espécie de retrospectiva sobre o conceito de memória discursiva até chegar à noção de intericonicidade para pensar nos sentidos imbricados na constituição do sujeito político.


[1] O programa eleitoral completo pode ser visualizado no seguinte endereço eletrônico: http://www.youtube.com/watch?v=bnKBkAmbFDs

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Publicado

2015-02-24